Recomeçar
Um fim-de-semana em Portugal. Desporto e política e o que fazer agora que se fez tarde.
Festejam-se títulos, subidas de divisão, qualificações europeias, manutenções. Choram-se vantagens perdidas no último jogo, descidas, desilusões. O fim-de-semana de todas as decisões nos campeonatos profissionais portugueses foi também o fim-de-semana de um ato eleitoral que deixa a governabilidade do país inalterada, com o mesmo discurso titubeante sem capacidade de encontrar uma maioria para liderar, enquanto se reforça um bloco político apetrechado de forte investimento para nos fazer crer que o poder apodreceu. No desporto raramente se paga a alguém para tornar uma equipa pior. As coisas podem acontecer, e o caminho do campeão Sporting é um exemplo de que acontecem, uma boa equipa ficar pior para poder-se recuperar uma base mínima para a transformar em campeã, mas normalmente acontecem num meio onde a competitividade é frágil - e quando se confunde competitividade com os pontos somados não se percebe que a falta de competitividade é exatamente aquilo que vivemos, nenhuma equipa a obrigar outra a ser melhor. Mas na gestão política, sim. Não parece restar qualquer dúvida de que uma parte considerável do falhanço do Estado em Portugal é patrocinado por aqueles que detêm o poder: a declaração de interesses ser um processo individual faz-nos ignorar a forma como se pode ter um interesse que beneficia um pequeno coletivo na linha ao lado. Em Portugal, o processo revolucionário foi travado por um processo de retoma que, sendo lento, tem sido inexorável. Num momento em que esse processo chega ao osso, festejado popularmente por aqueles que, uma e outra vez, pagarão a conta, não nos devemos deixar ficar, do lado de fora, a ver passar.
“Apenas o Rui Borges de Mirandela”
Rui Borges diz que nunca estudou, mas tem uma formação de elite que lhe permite ser treinador na Liga dos Campeões. Rui Borges diz que é apenas o Rui de Mirandela, mas à sétima temporada como treinador nos campeonatos profissionais conseguiu uma progressão rápida desde a Segunda Liga ao título, passando por uma equipa europeia. Estamos sempre a ser expostos a narrativas que não são exatamente baseadas em factos. O título do Sporting não escapa a isso. A equipa foi dominante durante onze jogos, mas quatro derrotas consecutivas quebraram a confiança, a clareza de espírito, o plano que talvez não existisse. Os últimos três jogos com João Pereira tinham a desconfiança nas condições do treinador, mas também tinham aquela que seria a realidade da equipa até ao final. Uma capacidade mínima para se superiorizar aos rivais, que foi sabiamente manejada por Rui Borges perante um Benfica incapaz de afirmar todas as suas potenciais forças.
No desporto os títulos podem festejar-se como marcos históricos. Na política, tende-se a festejar resultados da mesma forma.
No desporto os títulos podem festejar-se como marcos históricos. Ao calendarizar os acontecimentos como ciclos que se fecham época a época, as vitórias encontram um sentido, fazem-se um marco, mesmo que nada garantam sobre o passo que se seguirá. Para o Sporting, a reconstrução do plantel sem a sua maior referência, Viktor Gyokeres, será o confronto com uma realidade totalmente diferente daquela que viveu na presente temporada. Na política, tende-se a festejar resultados da mesma forma, tal como há muitos que olham as suas opções políticas como as opções desportivas - com uma fidelidade incapaz de se expor às dúvidas ou discussões. No entanto, a política apresenta-nos um processo contínuo onde cada resultado eleitoral é apenas um repartidor de forças que serão utilizadas nesse processo. As vitórias, em política, têm consequências no dia seguinte e ao acordar depois das eleições legislativas é bom que olhemos para o que temos pela frente.
“O povo quer este Governo”
Luís Montenegro viu a Coligação PSD/CDS aumentar o número de deputados no Parlamento, reforçando-se como força mais votada, mas não foi capaz de definir uma posição de força que lhe permita governar sem olhar em sua volta. Não era, no entanto, essa a sua luta. Como vinha ficando claro e era palpável desde as eleições do ano passado, a luta de Montenegro era contra o PS na definição de qual dos dois Partidos restariam para o combate frente ao Chega pelo predomínio do quadro político em Portugal. Ao percebê-lo muito melhor do que Pedro Nuno Santos, Luís Montenegro ganhou. O PS de Pedro Nuno Santos errou em toda a linha. Na forma como lidou com a herança pesada do último governo de António Costa. No discurso morno e pardacento da sua linha dirigente. Na sustentação dada à Coligação PSD/CDS. Ao cair na esparrela montada em volta de uma falha ética que não é defeito, é feitio. Luís Montenegro ganhou, sim, a sua guerra particular. Mas acaba por colocar o PSD numa posição cada vez mais insustentável defronte da sua história.
As razões do crescimento do Chega são muitas, mas interessam-me mais olhar para as condições do seu processo. A capacidade financeira para impor o seu discurso através de um modo de operar que cavalga as regras de convivência política e social permite-lhe aparecer aos olhos da população com quantas caras quantas são as vontades de cada um. Ao mantermos no espaço público uma leitura global e afastada da realidade, constantemente a cair nas armadilhas de quem subjuga as opções editoriais à sua própria sede de ganhar guerras de audiências, esquecemo-nos que o processo se está a desenrolar nas nossas cidades, nas nossas vilas, nas nossas ruas, nas nossas casas. São essas as condições do crescimento daquela que será a segunda força política no Parlamento. O isolamento, com cada vez menor pertença à comunidade, com os receios, a sensação de incapacidade, o desprezo que se sente quando não se consegue sair da porta.
Quando as linhas essenciais das condições de vida foram alcançadas e o processo político se começou a recentrar e a afastar da missão de melhorar a vida de cada um, o seu chão desapareceu.
O primeiro passo do combate é mesmo ser capaz de desanuviar a raiva para encontrar a maneira de recuperar o discurso. A esquerda perde a toda a linha. A que teve hecatombes eleitorais, como o PS e o BE. A que resistiu com perdas, como a CDU. A que sente ter vencido, como o Livre. Todos saem derrotados porque todos parecem insistir em ler o país sem meter as mãos na “merda”. A promessa que a democracia trouxe à população portuguesa foi a possibilidade de serem ouvidos para resolverem os seus problemas. Quando as linhas essenciais das condições de vida foram alcançadas e o processo político se começou a recentrar e a afastar da missão de melhorar a vida de cada um, o seu chão desapareceu. Ao longo destas décadas o não se encontrarem vozes que permitam reconstruir esse capital de sonho leva a que ganhem as vozes que se propõem a destruir tudo de novo. É aí que temos que pôr mão. É que aí que temos de, não impedir, mas recomeçar.
Obrigada Luís pelo âmago e esperança que ainda é possível obter da escrita e (também) do desporto.
A noite de ontem, que me está a custar muito digerir, só pode servir para relembrar que é preciso repensar o que andamos aqui a fazer enquanto "esquerda". É preciso sair das redes, sair da bolha, e ir para a rua apresentar um novo projeto social aos trabalhadores, aos operários, aos potenciais camaradas que estão completamente alienados daquilo que devia ser uma sociedade progressista. O que estamos a viver é o falhanço total do contrato social prometido pelo neoliberalismo e pelas democracias liberais do ocidente, completamente estranguladas pelo capitalismo em total decadência.
Como dizia o Brito Guterres o ano passado, mais do que nunca, é necessário irmos para a rua para filiarmos as pessoas "como comantes de uma mudança social". Penso que não há outra forma se não é essa de lutar contra isto - porque agora, sim, mais do que nunca, é uma luta. É preciso que a esquerda tome as rédeas do discurso de revolução - porque qualquer espaço que seja vazio, o comião neo-facho vai-o consumir com a ajuda das redes sociais e de alguns OCSs que lhe continuam a dar demasiado palco.
Abraço camarada e continuação