Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo
Isto é sobre um jogo de futebol, uma conferência de imprensa, um país que se deteriora, uma gente que se cala, isto é sobre Portugal.
Portugal alcançou o apuramento para a Final Four da Liga das Nações seguindo um guião que está impregnado na cultura portuguesa. Começou mal uma eliminatória onde ficou sempre aquém do esperado, prolongou as más sensações durante os noventa minutos da segunda mão, agarrando o empate já perto do final do encontro e aproveitou o prolongamento para, finalmente, ditar as condições para um final festejado com assunções de heroísmos e mitos para ditar o seguir em frente. Tudo isto aconteceu depois de um momento de suspensão de noção dos perigos do discurso numa conferência de imprensa onde Cristiano Ronaldo, capitão da seleção e investidor em meios de comunicação social em Portugal, anunciou não gostar de determinadas perguntas feitas por jornalistas, classificar perguntas como falta de respeito e ignorar o trabalho dos jornalistas que estavam na sala. A tudo isto assobiou-se para o lado, vangloriou-se a coragem, assinalou-se, com notas e análises às suas prestações em campo, como o que pesa é quem paga o trabalho e não a ética e a execução do mesmo em condições. Sinais de um perigo que estende os seus tentáculos pelo mundo. Uma vez mais o futebol a ser um campo de evidências e tantos tão assumidamente distraídos para o confrontar.
Podemos aprender com os erros?
A resposta que todos darão: Sim. A resposta que Roberto Martínez nos ofereceu na segunda mão dos quartos-de-final da Liga das Nações: Não. Façamos aqui um pequeno parêntesis. O futebol internacional é um território difícil. Raramente os melhores treinadores estão disponíveis para orientar seleções, tendo em conta que o trabalho na frente de uma seleção tem muito pouco de treino e muito de trabalho diplomático, liderança, motivação. Os longos períodos sem trabalhar diretamente no campo tornariam esta função impossível para muitos dos grandes treinadores de futebol do mundo. Este facto, agregado ao condicionalismo que é sempre a necessidade de juntar um grupo de jogadores de diferentes proveniências para atacar um objetivo em noventa minutos, deixa muitas vezes a análise ao que se passa num jogo de seleções muito longe das leituras que se podem fazer de jogos de Ligas.
Uma equipa tinha um mapa para atacar a eliminatória, outra não.
Regressemos à questão da aprendizagem. Portugal denotou no Estádio de Alvalade todas as lacunas que tinha apresentado em Copenhaga. No somatório de 180 minutos, a Dinamarca foi largamente superior à equipa portuguesa. Disse-o ontem durante o jogo, na Antena 1. Uma equipa tinha um mapa para atacar a eliminatória, outra não. A falta de uma ideia de jogo, de uma noção de coletivo, demonstrada pela seleção portuguesa é o que podemos concluir do trabalho de Roberto Martínez. O técnico abdicou de fazer esse trabalho, não tem nada para apresentar nesse capítulo, levando à conclusão, em campo, de uma equipa que não tinha a mínima ideia do que ali fazia. A enorme qualidade individual dos jogadores portugueses apareceu, no entanto, como não tinha aparecido no primeiro jogo. Com o desgaste do adversário e com opções consistentes a sair do banco, mesmo que a contraciclo das opções mais regulares de Martínez, Portugal acabou por empatar a eliminatória e ter direito a um prolongamento onde foi claramente superior ao seu rival. Podem ir espreitar que jogadores estavam em campo nesse momento.
Devemos temer as palavras?
A resposta que muitos darão: Não. São só palavras. O que podemos entender de um posicionamento reiterado por pessoas com enorme responsabilidade no desporto português: Sim. As palavras são um excelente indicador do futuro. Aquilo que é dito, a forma como é dito, os espaços onde se o diz, indicam-nos o tipo de ações que estas pessoas estão dispostas a executar no futuro. Não é uma bola de cristal. Um investidor em comunicação social aproveitar uma conferência de imprensa para definir a sua noção de jornalismo e comportamento de jornalistas é uma grande oportunidade para entendermos a forma como os seus órgãos de comunicação social poderão estar condicionados. Cristiano Ronaldo não deixou espaço para dúvidas. O que podemos entender do tratamento das suas exibições na imprensa reforçam-no. Não é uma ilusão.
Talvez seja de temer, nas palavras, quando nada mais nos restar do que as calar.
No fundo, não é sequer uma novidade. Num país onde o Presidente da República se junta a festa, acelerando com as suas palavras a definição sobre a construção de mitos que cada vitória da seleção de futebol parece proporcionar. Num país onde o discurso bélico toma facilmente conta do espaço do desporto, procurando definir um posicionamento nacionalista sobre o trabalho de uma equipa de futebol. Um país onde eleições se ganham por listas que recusam estar presentes em debates, onde outras eleições são marcadas para calendários que interessam a quem tem a possibilidade de as marcar e às mesmas concorrer. Um país onde se entende que o voto da maioria define as condições da justiça e da ética. Um país chamado Portugal onde já nada parece surpreender. Pergunto uma vez mais, devemos temer as palavras? Devemos temer o que nos acontece quando as dizemos ou escrevemos? Talvez seja de temer, nas palavras, quando nada mais nos restar do que as calar.