O incêndio que a todos queima
Compreender o outro é uma forma de compreender o mundo. Pensar sobre o que acontece a melhor forma de responder ao que nos é perguntado.
É a ouvirmos o outro que conquistamos acesso à sua realidade. Ouvir o outro, no entanto, obriga-nos a um ato de violência sobre nós próprios, tanto está em nós o centro da nossa existência. Estaremos prontos para abdicar desse lugar onde nos sentamos para entender o que acontece nas vidas que nos circundam? Se assim o fizermos, acabaremos por compreender que as vidas dos outros são como a nossa vida. Num momento em que o medo nos é dado à boca, em largas colheres de sopa, como medicamento para os males do tempo, a nossa capacidade para pensarmos no que existe para lá do nosso ego é chamada a campo para fazer toda a diferença. Pensar sobre os acontecimentos do momento é também uma forma de nos podermos posicionar para a maneira como queremos estar no desporto. Na vida.
Soluções fáceis
Sexta à noite. Sentado na mesa de um bar, no meio de uma conversa sobre o que acontece nos programas de desporto da televisão. Ninguém assume ver os programas mais falados em direto. Ninguém perde tempo com isso. E, no entanto, olhando para as redes sociais, sabe-se o que pensa cada boneco desse programa, como reage às provocações dos outros, como é risível o facto de determinados momentos serem de tão pouca qualidade. Todos se riem. Riem-se porque estamos no mundo das soluções fáceis. Não oferecemos qualquer tipo de atenção dedicada a ninguém, em lado nenhum. Do que passa na televisão, nas redes sociais, onde for, apenas captamos meras cenas instantâneas que depois desdobramos numa realidade que se acomoda às coisas em que acreditamos. Deixando desta maneira escapar o facto de muitos dos temas ali lançados serem criações do próprio canal.
A nossa mente fica contaminada por esse exagero dos gestos que acreditamos como real. E não só não é real, como nem sequer é um programa de desporto.
A maioria das pessoas acredita nesses bonecos como entidades reais. “Vejo-o porque pelo menos, ele, está mesmo ali a sofrer, mesmo ali a emocionar-se, percebe-se isso.” Percebe-se mal. O bom teatro tem destas coisas. O bom ator alimenta-nos essa ilusão. A ilusão de que o verdadeiro adepto se senta num estúdio de televisão e reage a cada instante como se uma mola o fizesse saltar. Não é o coração, é o guião. O problema é que a partir do momento que acreditamos que a telenovela é real, toda a restante realidade passa a estar condicionada por essa guia. Observamos e lemos tudo o que acontece em volta como um exemplo mesquinho daquela realidade aumentada. A nossa mente fica contaminada por esse exagero dos gestos que acreditamos como real. E não só não é real, como nem sequer é um programa de desporto.
Momentos difíceis
Sábado à tarde. Ainda a preparar as coisas para ir para o trabalho, vejo o que me custa não estar lá, no Marquês de Pombal, onde entretanto começa a Manifestação da Vida Justa. Esta semana tivemos muitas vozes de homens e mulheres negras ou originários de meios desfavorecidos sentados em estúdios de televisão a falar-nos de uma realidade que raramente ali tem lugar. Foi preciso um homem ser morto por um polícia para isso acontecer, penso. Não só. Foi preciso que fossem incendiados caixotes do lixo, carros, autocarros. Um homem ser morto na Cova da Moura era para ser apenas mais uma notícia efémera, passa e esquece, o mal dos bairros encerrado cada vez mais dentro deles. Foi preciso ver incêndios na cidade para chamar alguém a falar do que é a sua vida, descentrada do que se convencionou ser o centro de todos por ser o centro dos mais poderosos.
O mundo está feito de muitas vidas e muitos centros e é no equilíbrio de todos que poderemos encontrar uma resposta capaz.
Ouvimos essas pessoas na televisão, lemo-las nos jornais com maior distribuição quando só as líamos nos sites mais dados a notícias das minorias, escutámos as pessoas que desceram a Avenida da Liberdade e o que descobrimos é o simples de pedido de justiça e igualdade que nos parece ser o mínimo olímpico para andarmos nesta vida. As experiências profundamente diferentes ficaram expressas num direto da SIC Notícias, onde vimos como a Polícia tratou um cidadão que ia de carro para casa. A forma como se reflete sobre essas experiências chegou-nos através de quem as vive diariamente e pensa sobre elas, no seu trabalho, na sua arte, na sua procura de respostas para seguir em frente. É essa reflexão que nos deve conduzir no passo a seguir. Porque o mundo não está feito das soluções fáceis que nos gritam de todo o lado. O mundo está feito de muitas vidas e muitos centros e é no equilíbrio de todos que poderemos encontrar uma resposta capaz.
Está a arder
Percebe-se o caminho que está aqui a ser desenhado? Entende-se como o campo onde todos deveriam poder jogar fica desfeito pela incompreensão que deitamos sobre os outros? A Manifestação do Chega mostrou bem ao que anda certa gente, autênticos bonecos, que gritam e incendeiam o debate público a cada oportunidade apenas para esconder a sua incapacidade para viverem num mundo onde todos temos os mesmos direitos. Os focos das câmeras televisivas acorrem sem pensar aos seus gritos, porque eles perceberam primeiro que precisam de incendiar para ganhar um lugar nas cadeiras onde podem falar daquilo que lhes apetecer. Permitir que o mundo dependa desta criação incendiária é o que nos deixa cada vez mais reféns do medo e mais afastados de uma solução que nos permita viver com justiça e igualdade.
Procuro encontrar formas de humanizar as pessoas que estão distantes, os acontecimentos que se geram, as fórmulas que se repetem. É pouco, é muito pouco, perante a onda gigante que nos toma a cada esquina do caminho.
A desolação perante os resultados deste combate que parece desequilibrado não nos deve levar a qualquer desistência. A zanga que nos salta dos dentes não nos deve fazer ceder perante a contínua provocação a estarmos a jogar em campo adversário. No desporto, isso foi ficando claro ao longo dos tempos, na forma como se transformou uma atividade lúdica, cultural, social, num acontecimento de constante tensão. Tensão essa que gera um mediatismo que a leva a expandir-se pelas bancadas, pelas relações, pelas conversas. Procuro encontrar formas de humanizar as pessoas que estão distantes, os acontecimentos que se geram, as fórmulas que se repetem. É pouco, é muito pouco, perante a onda gigante que nos toma a cada esquina do caminho. Mas é também a condição para um resgate que nos faça voltar a deter nas nossas mãos o poder de decidirmos de maneira equilibrada a forma de viver a nossa vida.