A morte que nos traz o bairro
Se só a morte é que nos faz olhar os bairros, não são os bairros que não estão a conseguir falar. O desporto é uma ferramenta para reconhecermos essa realidade.
Que Portugal acorde para a realidade dos bairros através da morte chocante daqueles que ali vivem é apenas uma forma de tornar ainda mais periférica a vida das pessoas que ali parecem estar condenadas a apenas sobreviver. A ideia de bairro tem, desde logo, nas áreas metropolitanas, a marca de uma despromoção automática na consideração por uma vida. E, no entanto, são as pessoas que saem diariamente do bairro que continuam a sustentar a base da vida das grandes cidades, através dos seus trabalhos desqualificados e desejadamente invisíveis, da manutenção da sua realidade presa a ferros em lugares que se afastam do centro pelas diferenças de classe, de educação, de mobilidade, de cor. Apesar das pessoas do bairro e dos jovens do bairro estarem sempre entre nós, a combater todas as dificuldades da vida que conhecemos e mais algumas, o lugar de onde vêm e a forma como nele habitam é-nos totalmente desconhecido, o que se agrava nestes momentos. A morte e a sua consequência tornam o bairro um lugar mais assustador, mais violento, mais separado da nossa realidade, evolução trágica de uma separação e afastamento que agrava de forma radical a sociedade que pretendemos construir.
Notícias da morte
Nas mortes de Carlos Pina no Bairro do Vale e de Odair Moniz na Cova da Moura, o futebol aparece referenciado. Pina tinha, na sua juventude, crescido para ser um jogador a quem viam potencial. Odair tinha ainda no futebol o seu campo de lazer. O desporto é mesmo a linha a que muitos se procuram agarrar para transformar a sua realidade. Dos bairros continuam a sair imensos talentos que começam a brilhar nas suas equipas, transitando para equipas maiores, desenhando sonhos, construindo carreiras, tantas vezes marcadas por elementos trágicos que não deixam de estar constantemente presentes na vida de quem tem que fazer muito mais para poder viver entre os demais. Muitos destes jovens quebram barreiras e superam todas as dificuldades para se transformarem em profissionais.
Precisamos de mais vozes que nos façam entender que o bairro precisa de ser visto de outra forma.
Ao mesmo tempo, o jovem do bairro nunca deixa realmente de o ser. No mundo do futebol, onde tantos subiram com esforço até ao alto da escala, conquistando estatuto vindo dos lugares mais pobres do país, continuamos a ouvir demasiadas vezes a estafada conversa das dificuldades do entorno, dos problemas da família e dos amigos, da incapacidade para lidar com as regras, da falta de educação, da cor da pele, para deixar de lado um talento que precisa apenas mais uma oportunidade para poder superar o lugar onde nasceu. Essa incapacidade de muitos para compreender a força do desporto está bastante estudada e analisada em países como a Inglaterra e a França, onde a dimensão dos problemas os tornou impossíveis de ser contornados. Mas para que isso aconteça precisamos de mais vozes que nos façam entender que o bairro precisa de ser visto de outra forma.
Os protestos e os sucessos
Os protestos em vários bairros de Lisboa nestes últimos dias, com autocarros e mobiliário urbano incendiados a ocupar a imagética que as pessoas têm dos bairros, tornará ainda mais complicada a vida dos jovens que querem encontrar o seu caminho no desporto. Não estaremos muito longe da verdade se dissermos que muitos destes jovens que protestam já viveram a experiência de ficar de lado por serem do bairro, com todas as dificuldades que daí advém. Mas também é verdade que essa necessidade de protestar cresce a partir do momento em que compreendemos a dificuldade para explicar a morte, para entender o raide policial à casa de uma família em luto, para enquadrar toda uma série de acontecimentos e desvantagens que não apareceram no momento da morte, mas que são a realidade quotidiana de vidas inteiras, de famílias inteiras.
Talvez o primeiro passo para começarmos a compreender o que existe para lá do estigma dos bairros seja apreender a maneira como as comunidades se reforçam para resistir.
O sucesso desportivo a partir do bairro tem tido sempre uma base coletiva. Seja alcandorado em projetos de associações e clubes locais que lutam contra as dificuldades para organizar equipas em meios onde os equipamentos desportivos são escassos e normalmente sobreutilizados, seja promovido pela união de elementos da comunidade que permitem a proteção do jovem talento com vista à sua passagem para clubes de maior dimensão, fora dos bairros, onde estes encontram terreno para desenvolver as suas capacidades. No entanto, a generalidade das histórias que ouvimos focam-se apenas na dimensão individual, como se a capacidade de singrar fosse um ato de super-herói. Talvez o primeiro passo para começarmos a compreender o que existe para lá do estigma dos bairros seja apreender a maneira como as comunidades se reforçam para resistir.
Compreender para mudar
Durante o último verão, Airton César Monteiro gravou uma série de curtos podcasts nomeados “Chelas é Futebol” no jornal Mensagem de Lisboa. O enquadramento dos vários clubes de Chelas, a sua história e importância para o desenvolvimento de oportunidades e para a construção de uma identidade estão aí bem demarcados e permite-nos abrir portas para realidades que coexistem com as narrativas que melhor conhecemos. Para além de continuarmos a poder acompanhar o esforço dos pequenos clubes de bairros que, sobretudo nos escalões de formação, continuam a tentar manter um espaço de desenvolvimento desportivo, também outros projetos como a Community Champions League, conquistada pelo Lisboa Futebol Clube em 2022, ou as competições de Futebol de Rua têm servido de espaço para utilizar o desporto como ferramenta de integração.
A sociedade em que vivemos não se vai transformar do dia para a noite. O problema é que parecem agravar-se as clivagens e separar para mundos diferenças os vizinhos com quem convivemos. Na maneira como se lêem os acontecimentos desta semana, a incompreensão do outro está demasiado presente na frase fácil que sai da boca de qualquer um, na rua, no café. Lutar contra isso é um esforço constante que nos deve acompanhar. Porque se, no meu bairro que não tem esse peso de ser um bairro difícil, nunca houve um tiroteio, ou a polícia nunca entrou de forma abusiva na casa das pessoas, os os jovens não tiveram que sair da rua mesmo quando não têm mais lado nenhum para ir, eu sinto que a vida correu tantas vezes de forma fácil, não me posso esquecer que nos bairros de tantos amigos as coisas nunca foram assim. Perceber isso é o primeiro passo para entender que algo tem que mudar.