O Desporto limitado pela ideologia do XXIV Governo Constitucional
Como conjugar preocupações num quadro limitado por fatores que não consegue controlar? A leitura da entrevista do Secretário de Estado do Desporto, Pedro Dias, ao Jornal Record.
Na edição desta quinta-feira do Jornal Record, Pedro Dias, Secretário de Estado do Desporto, explica em entrevista os erros da primeira versão do Orçamento de Estado apresentada, com valores de investimento no Desporto abaixo dos realmente previstos, aproveitando para apresentar um quadro de preocupações e objetivos para os próximos doze anos. Percebendo-se alguma dificuldade em situar a importância e abrangência do Desporto no desenvolvimento do país, parte das suas preocupações ficam expressas em linha com o já apresentado no Programa do XXIV Governo Constitucional. Ao mesmo tempo, é brutalmente evidente que o Desporto aparece aqui limitado por uma série de fatores que a própria Secretaria de Estado não tem capacidade para controlar, bem como princípios ideológicos que tenderão a quebrar o efeito que os programas apresentados poderiam alcançar. Pelo que, em suma, esta entrevista não deixa de nos oferecer um enorme sinal de como o Desporto não será uma prioridade do Governo PSD-CDS/PP.
A definição de Desporto
“O desporto é algo um pouco complexo, porque os resultados são apenas um dos fatores de desenvolvimento desportivo” (1)
Abeira-se da irrealidade esperar que um Secretário de Estado do Desporto consiga formular uma definição do que é o Desporto nas páginas de um jornal desportivo. Se esta frase não lhe faz sentido, talvez seja melhor mergulhar no contexto da mesma. Quase sempre a figura dos Secretários de Estado do Desporto é colocada em causa pelos resultados desportivos e o investimento realizado em momentos competitivos de elite. É nesse quadro que o Desporto enquanto atividade governamental ganha corpo, com a presença dos elementos políticos junto dos atletas ou nas bancadas das competições, estimulando um dos erros básicos que Pedro Dias se vê obrigado a tentar desconstruir logo às primeiras perguntas que lhe são colocadas.
Um jornal desportivo também é, pela sua natureza, um espaço onde a discussão sobre políticas e abrangência do desporto raramente têm lugar. Ameaçado por essa dupla dificuldade de tentar escapar ao predomínio dos resultados e fazê-lo num espaço onde os resultados são o foco central, Pedro Dias procura refugiar-se no programa do seu Governo, cometendo dois erros de enquadramento. Por um lado, repetindo a importância de quatro pilares para a política desportiva que nunca são clarificados na entrevista. Por outro, focando-se num plano a doze anos que aponta bem para lá dos limites do atual orçamento qualquer possibilidade de leitura das medidas. Percebe-se que se vive no campo da utopia, procurando corrigir erros que se dizem identificados mas que não são expressamente explicados. O resultado começa, logo aqui, por parecer frágil.
Stakeholders para que vos quero
“A responsabilidade de definir o rumo desportivo do país e de apresentar um plano de desenvolvimento desportivo é da competência exclusiva do Governo. Naturalmente, todos os stakeholders são importantes e vão participar, mas essa é uma competência do Governo” (1)
Stakeholders será, provavelmente, a palavra mais repetida pelo Secretário de Estado do Desporto na entrevista. A sua participação, importância e relevância é várias vezes convocada. No entanto, em determinado momento do discurso, surge a inevitável posição de força do membro do Governo. O enquadramento governamental tende a criar-nos este tipo de dualidades impossíveis de solucionar sem um posicionamento social mais sólido. Por um lado, existe um trabalho de diplomacia vazia que é uma constante de qualquer membro do Governo. Ministros e Secretários de Estado alimentam agendas de visitas e presenças que os tornam responsáveis de relações públicas, com a sua decisão a ficar sempre dependente do trabalho técnico de alguém. Ao mesmo tempo, essa diplomacia exerce-se também com um enquadramento de definição de quem manda.
É um erro e um abuso considerar que o Governo existe para mandar. Até porque, acreditando que esse seja o caminho, vamos estar sempre a entregar a condução e as decisões a quem não está melhor preparado para o fazer. É, desde logo, um desconcerto ler a palavra stakeholder tantas vezes repetida, empurrando a dimensão do Desporto para uma leitura mais empresarial e menos ecológica. Mas, para piorar, temos mesmo que ir consultar o programa do XXIV Governo Constitucional para entender quais são, então, os quatro pilares que vão conduzir as decisões deste e dos próximos anos.
Devem ser objetivos nacionais: aumentar a prática de atividade física e desportiva da população; diminuir a diferença na prática de atividade física e desportiva entre homens e mulheres; diminuir o nível de obesidade infantil e excesso de peso; e aproximar o investimento direto no Desporto e os indicadores de prática desportiva da média dos países da União Europeia. (2)
Ou seja, os quatro pilares apontados pelo Secretário de Estado tendem a um difícil entendimento do que poderá ser planeado, tendo em conta que a prática desportiva está presente em todos eles. Olhando para estes objetivos nacionais, poder-se-ia concluir que existe apenas um pilar para o programa do Desporto deste Governo, procurando apontar um conjunto de soluções que toque as diversas ramificações desse pilar central. Ora, se este fosse o entendimento, o mais provável é que o Desporto e a sua Secretaria de Estado ficassem ainda mais dependentes do que realmente estão das posições de outros Ministérios, como deixariam insatisfeitos os tais stakeholders tantas vezes referidos….
Uma e outra vez a ideologia
“Se em casa estas regras da vida coletiva e a educação não são passadas de forma assertiva não podemos depois esperar que as crianças tenham comportamentos diferentes.” (1)
No fundo, o que é problemático na entrevista de Pedro Dias é a constante presença de uma pesada ideologia que tende a contrariar aqueles que deveriam ser os objetivos de um Desporto com força social, com corpo cultural, com relevância na maneira como as nossas comunidades se constroem. A forma como o Secretário de Estado do Desporto define a base dos problemas da violência nos recintos desportivos, reportando à educação que se tem em casa, revela um enorme desconcerto sobre o que deve ser um papel de um membro do Governo. No desenho dos programas públicos, a essência das preocupações devem ser exatamente o proporcionar de um equilíbrio às populações que seja independente do que cada um possa ter acesso em casa. Procurando fornecer ferramentas e soluções para que todos acabem por conseguir explorar o máximo do seu potencial num quadro comunitário onde é o bairro, o município, a região, o país que fique a ganhar.
Quando um Secretário de Estado reporta a questões de educação em casa, percebemos que as palavras que possam ser alinhavadas para um qualquer projeto que dali saia serão vazias. Porque ao longo de toda esta entrevista fica claro que se vai tentar escapar ao assumir de responsabilidades, que se vai procurar manter uma linha de diplomacias que envolve as partes sem lhes conferir qualquer poder de intervenção, que o que importa é manter claro a hierarquia encabeçada pelo Governo e que, para questões complexas, se aportarão tiradas que desresponsabilizam esse mesmo Governo. Nenhuma novidade para ver aqui, infelizmente.
(1) Citações de Pedro Dias na entrevista publicada no Jornal Record de 17/10/2024
(2) Citação do Programa do XXIV Governo Constitucional
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