No centro da tensão entre adeptos e o futebol profissional
Na Amadora, o futebol acontece no cruzamento de diferentes territórios e identidades. Uma história de um bairro, de um clube e de uma Sociedade Desportiva a marcar os nossos dias.
Em Outubro de 2023 fiz esta reflexão para a edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, olhando a realidade da Amadora, onde o clube local, agora com uma Sociedade Desportiva no comando do seu futebol profissional, vivia (e vive) no centro da tensão das lutas dos adeptos no desenvolvimento do futebol profissional. Uma reflexão à qual vale a pena regressar, pelos acontecimentos e as discussões das últimas semanas.
Passaram catorze anos desde a última vez que um dos clubes grandes portugueses visitou o Estádio José Gomes, no bairro da Reboleira, concelho da Amadora. Na noite de 15 de setembro de 2023 o Estrela recebe o Futebol Clube do Porto e as ruas em volta do estádio animam-se, da mesma maneira como poucos meses antes, no dia em que a equipa garantiu a subida à Primeira Liga de futebol. Os cafés estão cheios de gente que se junta para acompanhar a azáfama que toma as ruas, enquanto o estádio se enche, pelos lugares marcados, pelas escadarias e mesmo em pé, junto às barreiras que separam os diferentes setores. Muitas das pessoas que estão na rua não vão entrar para ver o jogo. Ficarão pelos cafés, a acompanhar as incidências pela televisão e pelo barulho que vem do interior, a beber cerveja e à espera de ter razões para festejar no final do encontro.
O futebol profissional dos nossos dias acontece muito para lá das portas dos estádios. Se para receber um grande, a lotação preencheu praticamente 90% dos lugares disponíveis, com 5976 entradas contabilizadas, nos dois jogos anteriores, os números rondaram entre os 3624 e os 4300. A Amadora é a quarta maior cidade do país, ligada ao centro de Lisboa pela linha de Metro, mas a vida dos adeptos consome-se acompanhando os jogos pela televisão ou pela rádio, espreitando os resultados e as repetições dos golos nas redes sociais, não tanto na capacidade de pagar quotas de sócios e bilhetes que, para a partida frente ao FC Porto, iam dos 10 euros para associados, aos 30 euros para os não-sócios, com um lugar no camarote a custar 50 euros.
Ao visitar a Reboleira em dia de jogo, sente-se que o bairro continua a disputar uma certa tendência para a normalização que o futebol profissional tem imposto em volta dos locais onde se desenvolve. A vivência da rua, o desenho do estádio e das bancadas a lembrarem já tempos distantes, os corredores apertados e a vida que os adeptos trazem para uma ocupação algo caótica dos lugares, fazem-nos sentir a viajar no tempo, antes de todas as regras que tornam muitas vezes a ida ao futebol mais próxima à visita a uma asséptica sala de espera. Mas, por outro lado, lembramo-nos que o Estrela, tal como todos os clubes da Liga Portugal, só está nesta posição porque quando se tratou de travar a luta do desenvolvimento do clube, o dinheiro ganhou.
Glória, falência, renascimento(s)
O Clube de Futebol Estrela da Amadora foi fundado em 1932 e extinto em 2011. Durante o Estado Novo, a realidade competitiva do clube limitou-se aos campeonatos distritais de Lisboa, tendo sido a explosão demográfica nas décadas de 50 a 70 a constituir uma massa populacional que permitiria o crescimento do clube e, já depois do 25 de Abril, em 1978, a estreia na Terceira Divisão nacional. A ascensão do Estrela foi igualmente meteórica, com a primeira presença na Primeira Divisão a acontecer dez anos depois e o grande título da sua história, a conquista da Taça de Portugal em 1990, a não tardar. A única presença nas competições europeias aconteceu no outono desse ano, eliminando os suíços do Neuchatel Xamax e caindo no confronto com os belgas do RFC Liège. Nos dezanove anos seguintes, o Estrela passou catorze a jogar no principal escalão do futebol nacional.
No entanto, em termos financeiros, não existia uma estabilidade que acompanhasse a capacidade desportiva. Dívidas a jogadores, treinadores, funcionários, fornecedores, fisco e segurança social levavam à crise instalada e, na derradeira época entre os maiores, em 2008/09, só o apoio do Sindicato dos Jogadores permitiu que a equipa seguisse até ao final da prova. Não desceu em campo, mas na incapacidade para garantir fundo salarial. Descida de divisão que só piorou a situação, com nova desclassificação no ano seguinte e com o Estrela a cair para o terceiro nível competitivo, antes de fechar portas já com insolvência declarada pelo Tribunal de Sintra e dívidas que ascendiam aos 11.5 milhões de euros.
Foram precisos dez anos para voltar a ver uma equipa do Estrela competir no escalão sénior, já com um novo clube a assumir as cores e a história dos amadorenses. Em 2018/19, dois clubes históricos e vizinhos cruzavam-se num degradado Estádio José Gomes, à altura com o relvado em péssimas condições. O renascido Estrela encontrou o Clube de Futebol Os Belenenses, num autêntico hino contra o futebol moderno. Se do lado dos azuis de Belém se escrevia uma história que levaria o emblema a cruzar todas as divisões do futebol português até estar, hoje, na Liga 2, ainda com o controlo a pertencer aos seus sócios, do lado do Estrela a história seria bem mais conturbada. O potencial da cidade, dos adeptos e do património associado ao clube levaria, em 2020, à fusão do Clube Desportivo Estrela da Amadora com o Club Sintra Football, que detinha licença para participar nas provas nacionais mas não tinha estrutura nem ligação a nenhuma comunidade. De um dia para o outro, o Estrela voltava a sonhar com tempos de glória.
Processo de desenvolvimento das sociedades desportivas
A realidade atual do Estrela é a realidade da generalidade dos clubes de futebol profissional em Portugal. O poder dos sócios está concentrado nos clubes, associações com décadas de existência mas que foram, na sua maioria, servindo como acumuladores de dívidas, fruto de má gestão ou prevaricação. Esses clubes têm apenas uma posição minoritária na gestão do futebol profissional, entregue às Sociedades Anónimas Desportivas que estão nas mãos de investidores, em boa parte estrangeiros. Dos 27 clubes dos escalões profissionais presentes no relatório de transparência da Federação Portuguesa de Futebol, publicado em agosto, apenas sete têm o clube fundador como accionista maioritário. Oito clubes têm accionistas com participação em sociedades desportivas estrangeiras, revelando como o processo de multiclubes se vai alastrando por Portugal.
No momento da fusão, Paulo Lopo, atual presidente do Estrela, ficou com a maioria das ações do clube, com o anúncio, durante a época passada, da venda de 90% da sociedade à MYFC, “uma empresa tecnológica web3, focada em desenvolver soluções para o mercado desportivo global” conforme anunciado à altura em comunicado, onde também se revelava a intenção de desenvolver a partir desta aquisição uma rede com mais clubes estrangeiros. Entre os investidores, uma cara sobressaía de todas as outras. Patrice Evra, franco-senegalês que começou a sua carreira em Les Ulis, nos arredores de Paris, e que somou 81 jogos pela seleção francesa, marcou presença em cinco finais da Liga dos Campeões, tendo vencido uma com o Manchester United, para além de ter jogado no Mónaco, na Juventus e no Marselha.
O processo de desenvolvimento das sociedades desportivas não tem encontrado oposição suficientemente sustentada. Em assembleia geral de clubes, o discurso da necessidade de dinheiro e a ideia de que o investidor chega para “salvar o clube” tende a convencer a maioria. No caso da Amadora, apesar de uma proposta de municipalização do Estádio José Gomes apresentada pela CDU em Assembleia Municipal, o processo foi deixado sem intervenção do Município até que a atual Sociedade Desportiva o adquiriu em hasta pública. No concelho, na claque Magia Tricolor, entre os adeptos, muitos progressistas continuam a apoiar a sua equipa. Mas quem está em campo, apesar de o fazer em representação de valores e de uma história que pertence à comunidade, é hoje detido pelo poder do dinheiro.
A quem pertence o clube da terra?
O processo que vem separando os clubes profissionais das comunidades é quase sempre apresentado como inevitável. Com um crescimento pouco sustentado nos anos 80 e 90, a acumulação de dívidas nos clubes, quase sempre sem a responsabilização direta dos intervenientes nas direções que tomaram decisões danosas para os mesmos, criaram uma situação que pressionou o estado a intervir. A dimensão social e mediática dos principais clubes portugueses levam-nos a conseguir manter elevadas dívidas através dos exercícios contabilísticos onde se movimentam muitos milhões de euros, mas para os restantes clubes a realidade obrigou a transformações na sua estrutura formal. Clubes históricos do futebol nacional, como a Académica de Coimbra, o Salgueiros, o Beira-Mar, o Desportivo das Aves ou o Vitória de Setúbal desapareceram das principais divisões. Nessas, é possível encontrar outros clubes que, como o Estrela, desceram aos infernos do futebol não-profissional para regressar com novos investidores.
Boavista, Farense, Famalicão, Torreense, União de Leiria e Académico de Viseu são alguns desses exemplos. Casos onde a estrutura profissional já não tem intervenção direta dos associados, sendo geridos conforme os interesses dos donos das empresas maioritárias nas respetivas sociedades. Pelo caminho feito ao longo dos anos, no entanto, estes são ainda exemplos que permitiram aos adeptos manter uma ligação forte aos feitos das equipas. A realidade do futebol sempre foi uma realidade capitalista, desde o início dos tempos. A participação das massas populares sempre se fez em contraciclo, aproveitando as benesses proporcionadas pelo dinheiro colocado ao serviço dos clubes, mas percebendo que a sua posição na gestão dos destinos do mesmo era precária. Os, por enquanto, bons exemplos dos nossos dias têm uma clara ligação hereditária com aquela que sempre foi a história da organização dos clubes profissionais, um território de onde os progressistas se afastaram por não compreenderem o potencial deste no movimento de massas.
O melhor exemplo de reivindicação do poder dos sócios está hoje no Clube de Futebol Os Belenenses, que depois de se ter separado da Sociedade Desportiva que constituíra e ter visto um simulacro de clube, com a críptica denominação B SAD, ficar-lhe com o lugar nas competições profissionais, subiu a pulso os vários escalões desde as Distritais até à Liga 2, onde chegou no exato ano em que a B SAD desapareceu do mapa do futebol. No exemplo oposto encontramos hoje o AVS SAD, empresa que não detém qualquer ligação com um clube, mantendo uma equipa na segunda divisão do futebol português. Formada pelo Vilafranquense, no Distrito de Lisboa, jogou, desde que subiu às competições profissionais e durante três épocas, em Rio Maior, no distrito de Santarém, separando-se este ano do seu fundador para assentar arraiais em Vila das Aves, no Distrito do Porto, onde utiliza o estádio e se apropriou das cores do extinto Desportivo, procurando assim cativar o apoio dos adeptos locais. Tudo permitido pelos regulamentos da Liga Portugal.
O território do futebol
Regressamos ao Estádio José Gomes, onde na bancada de imprensa, elementos das quatro rádios nacionais que transmitem o relato do encontro se entreajudam para que caibam todos na apertada fila que lhes está destinada, chamando a atenção de um ou outro adepto mais jovem que se mantém de pé e tapa a visão para uma das balizas. Aqui vive-se uma dimensão popular do jogo que é preciso manter. Toda a envolvência permite um clima de festa e de emoção que não é fácil de se manter conforme aos regulamentos impostos pela Liga Portugal. O argumento da segurança tem levado a regras cada vez mais apertadas no acesso aos estádios, bem como o preço dos bilhetes vem causando dificuldades para que as massas populares acedam ao espetáculo.
Há uma clara transformação ideológica de adeptos em público e de público em clientes, que visa apagar das bancadas qualquer ideia de manifestação social e política, imposta pelas apertadas regras e pela definição de zonas onde as claques podem utilizar bandeiras e outro material de apoio. O desejo de apaziguamento das bancadas é mais um passo na utilização do evento desportivo com fins de controlo. Uma luta que as forças progressistas não devem deixar de travar. Na maneira como intervém nas associações desportivas, nas conversas de bancada, na vivência em redor do fenómeno desportivo. A Reboleira é um bairro onde toda essa tensão se mantém visível, entre as gentes do bairro e os carros potentes que trazem os convidados aos camarotes. O futebol é um espaço onde se continuam a elaborar tendências que afetam o todo da sociedade e, também por isso, não pode ser deixado de lado como um fenómeno onde o inevitável segue o seu caminho sem oposição.