Mariana Cabral enquanto oportunidade para o futebol no feminino
O futebol português precisa da voz de Mariana Cabral, tanto quanto Mariana Cabral precisa de uma nova oportunidade para se comprovar como treinadora de elite.
A saída de Mariana Cabral do Sporting Clube de Portugal significa um fim de um ciclo de crescimento da treinadora, mas, acima de tudo, o fim de uma oportunidade para o futebol português no feminino. Pelo seu discurso e posicionamento, Mariana Cabral foi muitas vezes uma voz algo solitária na exigência colocada perante o investimento e as possibilidades para as mulheres no futebol. Mais, vivendo, desde os tempos de jogadora até hoje, um período de evolução do futebol no feminino, a sua voz manteve-se sempre clara no pouco que significavam os passos que outros destacavam como grandes. No entanto, a sua saída também pode ser ligada a esse aumento que a própria alimentou. No futebol, seja de que género for, a ausência de resultados tende sempre a pesar mais do que qualquer outro ângulo de análise.
A construção da voz
Enquanto jogadora, Mariana Cabral viveu os tempos do amadorismo do futebol português no feminino, passando por duas equipas que marcaram a época, o Futebol Benfica e o 1º de Dezembro, onde foi campeã nacional e venceu a Taça de Portugal por duas vezes. Numa altura em que já era jornalista no Expresso, onde se tornou uma referência na área do Desporto, o abandonar da carreira de jogadora para se tornar treinadora mostrava qual o caminho que apontava ao seu futuro, no pensar do jogo e na forma de o colocar em prática. O seu trabalho na formação de diferentes clubes levou-a até ao Sporting, onde foi subindo também nos escalões de formação femininos, conquistando títulos e, acima de tudo, construindo uma geração de jogadoras que viria a aproveitar enquanto treinador principal, cargo que assumiu em 2021.
Mariana Cabral fala com uma liberdade e um acerto que não têm paralelo no quadro demasiado fechado e dependente que se foi criando na modalidade.
Pelo seu percurso, Mariana Cabral foi sempre uma figura capacitada para um discurso que, infelizmente, ainda é raro no contexto do futebol português. O seu trabalho de jornalista permitiu-lhe exposição e análise aos problemas que as mulheres vivem no futebol de elite e essa consciência esteve sempre presente nas suas lutas, desde a defesa de quadros competitivos mais exigentes para os escalões de formação, o trabalho das seleções nacionais, a exigência tática na formação, as condições de trabalho e aproximação ao profissionalismo, as condições dos campos onde se disputa a Liga, a aposta que os clubes e o clube que representava fazem nas equipas femininas. Estes e outros tantos temas foram razão de crítica e luta nas palavras de Mariana Cabral, com uma liberdade e um acerto que não têm paralelo no quadro demasiado fechado e dependente que se foi criando na modalidade.
Uma oportunidade interrompida
É inevitável olhar estas três temporadas e uns poucos meses com uma treinadora reivindicadora numa das maiores equipas portuguesas como uma oportunidade que se fechou. A necessidade de continuarmos a ter pessoas que apontam os problemas e as fragilidades do crescimento do futebol português no feminino acentua-se com a maturação do investimento feito e ter alguém que está num lugar de destaque a afirmar um olhar feminino e acutilante é uma arma de luta não despicienda. O seu legado enquanto formadora ficará demarcado nas jogadoras que orientou, mas seria fundamental encontrar quem consiga manter o seu discurso vivo. De alguma forma, a saída é também um reconhecimento de uma derrota. O nível de exigência não acompanha o aumento da qualidade das jogadoras e a opção do Sporting Clube de Portugal por um treinador sem qualquer experiência prévia em equipas femininas denuncia o trancar de uma porta no que toca à reivindicação dos direitos das mulheres.
Em Portugal, saindo do Sporting, não parece haver um contexto ideal para o próximo passo.
Por último, é também pela exigência, mais mundana, de resultados que o ciclo de Mariana Cabral chega ao fim no Sporting. Em termos futebolísticos, há um longo caminho a percorrer para vermos a treinadora conseguir justificar a sua pertença a um nível de elite. Da equipa B para a equipa principal, os primeiros anos de Mariana Cabral no Sporting denotaram um futebol demasiado preso e contido na abordagem, agarrado a um ciclo de passes que acabava por denunciar uma falta de agressividade que custou ao Sporting o demorar a aproximar-se de um Benfica muito dominante. Na época passada, com o Benfica na Liga dos Campeões, as vitórias na Liga e, ainda assim, a fuga do título, marcaram definitivamente alguma incapacidade para vencer na regularidade. Na presente temporada, finalmente com um plantel que, olhando aos nomes, no mínimo se iguala ao seu rival, e que também demonstrava uma possibilidade de evolução tática inovadora no que se conhecia do trabalho de Mariana Cabral, acaba por não ter tempo para comprovar que essa evolução se iria mesmo fazer. Em Portugal, saindo do Sporting, não parece haver um contexto ideal para o próximo passo. No estrangeiro, onde poderá encontrar uma equipa com a estrutura necessária para se evidenciar, terá que ser capaz de associar a evolução técnica à manutenção do seu discurso ímpar.