A resistência do adepto à transformação do universo futebolístico
Não começa bem a nova temporada de problemas antigos, onde ao adepto parece restar um papel cada vez mais limitado de uma indústria que só espera que este pague a festa.
As novas temporadas surgem sempre como promessa de uma mudança ou evolução que faz parte de um discurso economicista que contaminou por completo todo o universo do futebol. Os resultados, os lucros, os sucessos das contas e das transferências, o crescimento do valor é um léxico que está sempre presente em todas as administrações de clubes e da Liga. No fundo, é a noção de que existe um crescimento constante, sem travão, a levar o futebol português para uma dimensão da qual não se verá o fim.
Este crescimento transforma o universo em indústria e procura manietar o papel de cada um dos seus elementos num precursor dessa transformação. Aos jogadores, para além de jogar, exige-se que sejam figuras mediáticas. Aos treinadores, para além de treinar, procura-se que sejam mensageiros dos princípios dos clubes. Para as administrações, esse reposicionamento dos elementos numa escala de valor leva-os a procurar, constantemente, quebrar as fronteiras das possibilidades do lucro. Para os adeptos, transformados em clientes, resta animar e pagar a festa.
A experiência no estádio
É exatamente no colo dos adeptos que vão caindo a maioria dos problemas que se mantém inalteráveis na Liga Portuguesa. A experiência no estádio, com procura acentuada neste início de temporada, oferece, desde logo, o convívio com diversos tropeços. Esta temporada, com visitas a Alvalade e à Luz, deu para perceber como o processo de concentração de adeptos em zonas específicas nos momentos prévios ao jogo têm trazido um aumento da noção de controlo, mas também a experiência de perigo. Depois desse movimento ter sido realizado nos arredores do Estádio da Luz, que na prática mantém ainda duas zonas diferentes, uma no interior das instalações do clube, outro numa rua adjacente, este ano é nos arredores do Estádio de Alvalade que se vê a concentração da zona das roulotes de comida, puxando o fluxo de adeptos todo para a mesma zona.
Num momento em que se procura valorizar a experiência do adepto, o cruzamento entre limitar o que se faz nos arredores do estádio e a precariedade do que se encontra dentro do mesmo parece ser uma questão que ainda não toca os organizadores da competição.
A precariedade da oferta dentro dos estádios também continua sem fácil explicação. Sendo certo que ambos os estádios têm restaurantes e camarotes com ofertas mais caras, o adepto de bancada enfrenta sempre uma limitação, quer na diversidade dos produtos, quer na qualidade, para mais se comparados com o que se encontra fora do estádio. Esta realidade é ainda mais cruel se visitarmos outros estádios - na presente época já visitei o Estádio Municipal de Mafra e o Estádio Manuel Marques em Torres Vedras, ambos da Liga 2. Num momento em que se procura valorizar a experiência do adepto, o cruzamento entre limitar o que se faz nos arredores do estádio e a precariedade do que se encontra dentro do mesmo parece ser uma questão que ainda não toca os organizadores da competição.
A consequência da lei
A criminalização dos artefatos pirotécnicos nos estádios é um dos elementos centrais de uma lei que tem servido variados episódios para delimitar as expressões de diversidade no universo do futebol. A forma como se olha para as claques como um movimento a eliminar tem uma longa história que não deve ser esquecida. O crescimento dos Grupos Organizados de Adeptos foi uma via de alargamento da influência das direções dos clubes sobre as bancadas, utilizados, em muitos casos, para fins completamente opostos ao da sua génese e ao da sua cultura. O descontrolo de alguns destes grupos e consequentes episódios, transformou-os de animadores de bancada em indesejados habitantes da mesma.
Nas duas jornadas inaugurais da Liga Portuguesa, em Alvalade e na Luz, intervenções das forças policiais para identificar elementos que haviam utilizado artefatos pirotécnicos levaram a desacatos nas bancadas. A forma como as intervenções, sobretudo no caso da Luz, não consideraram as consequências, com adeptos feridos e várias crianças em pânico perante a movimentação das massas na bancada, deixa antever novas situações de delimitação de liberdades. Que se sentem, cada vez mais, na forma como se controla a exibição de mensagens e o seu teor nas bancadas, apagando definitivamente a expressão da bancada como elemento cultural diferenciador no universo do futebol. No território da indústria, só fala quem tem poder.
Por onde cresce o crescimento
Enquanto a mensagem do crescimento da indústria se inculca nas mentes de todos, utilizando exemplos de comparação de realidades financeiras, fiscais e políticas bem afastadas da nossa, o adepto vai sendo retorcido e reutilizado em diversas dimensões. Seja no preço dos bilhetes, nos horários dos jogos, nas limitações à expressão da sua opinião, tendo em conta que na Liga participam quase só Sociedades Desportivas que não têm espaço para expressão da opinião do adepto. Ao adepto, em lugar de se lhe reservar um espaço no coração do universo do futebol, pede-se que pague e se chegue para o lado para o espetáculo passar.
Os momentos de exibição da indústria parecem, cada vez mais, acontecer numa galáxia longe dos adeptos.
Os momentos de exibição da indústria parecem, cada vez mais, acontecer numa galáxia longe dos adeptos. Adeptos que não têm como contactar de perto com os jogadores, que vêem delimitada a sua relação com os clubes, que lidam com custos mais altos no acesso aos jogos. Adeptos que, naturalmente, estão demasiado longe da forma como se organizam os momentos que festejam o sucesso das competições e das organizações do futebol nacional. Adeptos que, ainda assim, procuram resistir à tendência de serem levados pela indústria à existência de meros clientes, sobretudo quando para clientes vai faltando o tostão que o comporte.