Ainda estamos longe de acordar, esta manhã
As eleições americanas, a subsistência da democracia, o comportamento social e as lições do desporto que se continuam a ignorar.
A angústia dos derrotados é uma arma para os vencedores. A raiva dos indignados um brinquedo para os provocadores. Centramo-nos demasiado na forma, tantas vezes de maneira quase exclusiva, mantendo uma dura ignorância sobre o substrato, o que ficou por baixo, à espera de rebentar. Não, ainda não rebentou, não é este o fim dos tempos, nenhum apocalipse. Ainda vivemos todos uma encenação. Se há característica humana que se esconde por debaixo da razão é a facilidade com que acaba manipulada. Só essa manipulação justifica que todas as tensões e insatisfações com uma institucionalização da vida social que mantém e agrava as diferenças entre os mais ricos e os mais pobres, entre os privilegiados e os que se sentem deixados de fora da linha do progresso, que seja um homem de negócios, fruto desse mesmo sistema de privilégio e exploração, a assumir-se como um símbolo da luta anti-institucional. Esta não é, portanto, nenhuma revolução. É apenas um passo torto dos muitos passos tortos com que se faz a história universal.
A democracia a desconfiar dela própria
É assim que a democracia funciona, a forma de governo sustentada na aceitação da derrota. O que parece inquietar é o caminho que esta democracia que vence seja aquela que recusa qualquer outra conclusão que não seja a sua vitória. No desporto, isso é por demais visível. Não há vitória que não se confronte com a derrota, não há crescimento que não seja colocado em causa pela nova temporada que começa, não há ação que não tenha, logo ali, em campo, espaço para ser contrariada pela ação do outro. No desporto, vivemos o território perfeito da argumentação e contra-argumentação, baseada nas opções trabalhadas por cada um e explanadas num confronto que é sempre teórico: eu jogo o que me permites jogar, as regras condicionam-nos a aceitar as nossas incapacidades, levando o jogo até ao fim.
Num mundo onde se quebraram todos os cânones, desde o artístico ao noticioso, desde o cultural ao social, subentende-se a desvalorização das regras. Nesse mundo, começou-se por colocar em questão o árbitro e, pior, começou a ser validado o questionamento das regras até ao ponto de se avaliar a possibilidade de quebrar o jogo tal como ele foi acordado. Perante essa possibilidade, quem sente que está a perder, grita “rebenta a bolha”. É para aí que se caminha, é essa a tendência que se sente nos crescimentos dos populismos que sempre tiveram muito da cartilha de Bannon, da atuação de Trump. O que podemos parar para questionar é: mas porque seguem esse Flautista de Hamelin? A resposta é particularmente simples. Esta manhã, com o anúncio dos resultados das eleições americanas, o dólar fortaleceu, a bolsa animou, a economia gostou. A ameaça da destruição está a alimentar os que mais desejam o lucro e são esses quem patrocina a manipulação. Uma péssima notícia para quem votou em Trump a acreditar que lhe sobrarão umas migalhas.
Uma questão de comportamento
O que continua a magoar mais quem olha à sua volta neste mundo é uma transformação comportamental que se reflete na política, mas que está em todo o lado. Parte dessa mudança são notícias falsas. Notícias falsas porque se acreditou que existia uma cidadania média que acontecia nas elites, nas melhores escolas dos rankings, nos jornais nacionais e na televisão que, na realidade, foi sempre uma bolha. Desse ponto-de-vista, não há nada no mundo que se esteja a transformar, está apenas a emergir uma linha comportamental que foi encerrada dentro de portas, taxada de inaceitável no espaço público, mas que agora se sente recuperada, refeita, reenergizada, capaz de conquistar o seu lugar. As “conversas de café” sempre aí estiveram. Os desejos de ordem também. A admiração pelos “homens fortes”, pelos gestos ditatoriais de pequenos líderes, de disciplina cega foi sempre uma constante.
O mundo segue o seu passo torto e, se quem consegue perceber o contexto onde nos sentamos não estiver disponível para agir de forma a mudar, novos fundos estarão aí por descobrir.
Como o desporto demonstra bem, quando pessoas inteligentes e racionais se aceitam irracionais perante os acontecimentos, desapaixonados das regras e desejosos de um erro arbitral a seu favor, o que está em causa nos nossos dias não é também uma transformação ideológica. Trata-se, acima de tudo, de uma duplicidade de incompreensões. Quem beneficia de privilégios, não compreende que se possa sair a perder, quando as coisas estavam, de facto a correr bem. Não é por acaso que a satisfação com a economia tenha sido um dado muito definidor das intenções de voto. Por outro lado, quem foi ficando do lado de fora das políticas progressistas, obrigado a satisfazer-se com uma condição imutável, não compreende que existia ali uma escada para subir, preferindo destruir as escadas e alguns pilares, na ânsia de que exista mais gente a provar o sabor da derrota. O que acontece é que, nesse mundo, todos perdem. E onde todos perdem, acreditem, não haverá satisfação individual que venha alguma vez a encontrar algum sentido. O mundo segue o seu passo torto e, se quem consegue perceber o contexto onde nos sentamos não estiver disponível para agir de forma a mudar, novos fundos estarão aí por descobrir.
Sugestão de leitura
Milan Loewer, na Jacobin, explica-nos uma parte do que aconteceu nestes últimos meses.