Formas produtivas de pensar no VAR
O livro de Daisy Christodoulou ajuda-nos a perceber o que tememos e o que poderemos vir a ter do VAR.
Se é certo que a expetativa que se criou com a introdução do VAR no futebol foi a de um baixar da tensão e discussão com a sucessão de menos erros na avaliação da arbitragem, parece-me óbvio que essa expetativa dificilmente seria atingida. Na verdade, o VAR oferece-nos um crescente foco em questões de arbitragem, pela forma como transforma o erro humano que pode acontecer num terreno de futebol num potencial erro humano que se expande com a possibilidade de utilização de tecnologia. E se, quer na tecnologia na linha de golo, quer na avaliação dos fora-de-jogo, apesar de eventuais margens de erro, se encara o momento de intervenção do vídeo como um momento de medição evidente, no que toca a faltas a avaliação humana não é retirada da equação, vê-se numa equação com mais meios que podem ser utilizados, o que de forma natural vem aumentar a discussão e a polémica sobre este tipo de decisões.
, especialista em educação, escrever o livro “I can’t stop thinking about VAR” para considerar estas e várias outras questões levantadas pela utilização de tecnologia no desporto e no futebol em particular. Apesar de, no final, não estar do lado dela quando aconselha a retirada do VAR até se encontrar uma melhor solução, este livro obriga-nos a pensar sobre o futebol, a utilização da tecnologia e as expetativas e capacidade de avaliação dos humanos. E isso é um conhecimento que não podemos desperdiçar.A mão de Henry
O exemplo máximo de uma má decisão arbitral que poderia ter sido resolvida pelo VAR é a mão de Henry, no jogo frente à República da Irlanda em 2009, que determinou o apuramento da França para o Mundial 2010. Esse lance, evidente para quem assistia ao jogo na televisão e, creio, para a maioria das pessoas presentes no Estádio, marca o tipo de erro que um jogo cada vez mais televisionado não poderia continuar a ignorar. Eu, que vejo futebol desde meados dos anos 80 do século passado, tenho uma longa experiência em ver jogos antes da assunção da tecnologia. Nos estádios, a experiência que se vivia era a de uma desconfiança passageira. O árbitro apitava ou o seu assistente levantava a bandeirinha, mas por muita desconfiança que este ou aquele lance convocasse, rapidamente se passava a atenção para outra coisa. Ainda para mais, grande parte da minha experiência era em jogos que não tinham sequer repetição na televisão.
Depois de se experimentar uma temporada com VAR, e mesmo com todos os seus defeitos, dificilmente se volta a aceitar um mundo onde a mão de Henry pode acontecer.
Aliás, mesmo um jogo que me ficou marcado na memória, os quartos-de-final da Taça de Portugal 98/99 entre Torreense e Vitória FC, quando no prolongamento a minha equipa marcou um golo e este foi anulado por fora-de-jogo posicional, as imagens que passaram na televisão são impossíveis de clarificar se a decisão foi certa ou não. Ficou na ideia, posso falar disso quando a caminhada na Taça de 99 é relembrada, mas não há prova de ADN que me valha. É o jogo televisionado que vem transformar a necessidade do adepto. Primeiro, porque a pressão de quem assiste o jogo em casa é crescente. As jogadas com direito a repetição constante, que se estendem pelas horas e dias seguintes, torna o futebol irrelevante e a arbitragem central. No estádio, o adepto corre o risco de, muitas vezes, ficar descontextualizado da decisão através de vídeo, mas também é certo que cada vez mais a existência de um telemóvel com imagens da transmissão se tornou um foco maior da atenção nas bancadas do que aquilo que realmente se pode ver em campo. Seja como for, depois de se experimentar uma temporada com VAR, e mesmo com todos os seus defeitos, dificilmente se volta a aceitar um mundo onde a mão de Henry pode acontecer.
Christodoulou e o VAR
O livro de Daisy Christodoulou condensa os problemas do VAR em diferentes áreas, como a mão na bola, as faltas, os fora-de-jogos e golos, o ritmo do jogo e o erro humano. Os movimentos anti-VAR concentram-se sobretudo no ritmo da partida e na forma como este é fragilizado e modificado com a existência do VAR. Em determinados momentos, coloca-se em causa se o futebol consegue aguentar a existência da avaliação vídeo, na forma como as suas regras foram afetadas e expostas a contínuas alterações depois da implementação desta tecnologia. Para os diversos problemas apontados, a autora apresenta um conjunto de soluções que nos obrigam a pensar na forma como vemos o jogo. É por demais evidente que um território que depende de decisão humana vai estar sempre exposto ao debate. Sendo que, no fundo, o que podemos desde logo corrigir é a nossa necessidade de uma decisão perfeita, um problema que me parece central na maneira como falamos do VAR. Se aceitarmos a realidade de que não existem decisões perfeitas, talvez possamos dormir um pouco melhor com a decisão do video-árbitro, mesmo que dormir melhor nunca seja uma preocupação latente do adepto no momento em que acompanha o jogo da sua equipa.
Pode ser que os receios de Christodoulou sejam, para um português, um aviso que chega com atraso.
As propostas de Christodoulou são profundamente influenciadas pelo seu trabalho na área do julgamento comparativo e na introdução de tecnologias no sistema educativo britânico. O mais interessante do seu livro é exatamente como somos tão expostos à nossa forma de julgar as coisas que vemos e a conjugar essas sensações com a tradição de um jogo que nos toca de forma tão integral, social e culturalmente. Inglaterra, é certo, continua a ter uma vivência do futebol muito concentrada nas bancadas, com uma exploração das questões de arbitragem muito menor do que nos países ibéricos, por exemplo. De alguma forma, o VAR introduziu no jogo inglês um conjunto de perplexidades que já eram diárias em Portugal e Espanha. Essa ameaça cultural é bem latente no escrito de Christodoulou. Adaptando a realidade desde livro a Portugal, diria que talvez ele nos ajude a explicar questões mais profundas. Porque quando se foca, por cá, tanta questão na ideia de um mercado diferenciado, onde só os três grandes e outras raras exceções movem uma massa adepta alargada, é bom perceber que isso passou a ser particularmente evidente apenas no desenvolver do mercado de transmissões televisivas. A maioria das equipas portuguesas perderam, ao longo dos últimos anos, uma enormidade de adeptos nas bancadas que se deslocaram para o acompanhar do jogo pela televisão. Pode ser que os receios de Christodoulou sejam, para um português, um aviso que chega com atraso. Mas pensemos ainda nas formas de aproximar o jogo às raízes que o tornaram universal, porque é esse potencial que não podemos desperdiçar.
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