Foi de carrinho
Decisões de arbitragem, erros de defesas, confusão na forma como se debate a reta final da Liga Portugal.
Dir-nos-ão que é inevitável que uma ponta final de campeonato emocionante e equilibrada se transforme sempre numa longa troca de argumentos sobre decisões de arbitragem. Há uma coisa que não ajuda, em nada, à melhoria das decisões dos árbitros - só olharmos para o problema a partir de casos concretos, normalmente isolados em gavetas que implicam apenas os momentos em que o “nosso” clube foi prejudicado. Sendo indesmentível que os árbitros têm cometido erros que merecem a mais funda reflexão - um problema que se tem vindo a agravar com a forma como as leis do jogo, a essência do jogo e a existência do VAR têm alguma dificuldade em coabitar - também fica claro que nos dois casos que marcaram os jogos de Sporting e Benfica neste fim-de-semana existem abordagens erráticas de defensores que fornecem melhores explicações sobre os lances do que qualquer teoria sobre a corrupção dos intervenientes. Olhar o jogo pode ajudar-nos a perceber melhor o que acontece quando algo acontece em campo. Resolver as questões que o VAR tem lançado sobre a forma como vivemos o jogo pode ajudar-nos a viver melhor com as decisões tomadas.
A área é uma rua pedonal
Nico Otamendi lançou-se em carrinho dentro da própria área e o árbitro assinalou penálti contra o Benfica. A história do futebol tem tantos casos assim que se acabou por se instituir uma verdade de senso comum que diz a todos os defesa que não podem fazer carrinhos dentro da área, a não ser que sintam ter total acesso à bola. O argentino é reconhecido por muitas vezes ter abordagens arriscadas aos lances. E no lance do penálti marcado a favor do Arouca, a responsabilidade da falta está toda no capitão do Benfica. Um erro infantil na abordagem ao lance colocou a vitória da sua equipa em risco. Curiosamente, quase nenhum analista de arbitragem analisa a situação do ponto-de-vista do erro do defensor. O foco está na ação do avançado e é por essa ação que a análise é determinada.
Diria que o lance teria tudo para não ser penálti se o jogo se jogasse na televisão.
Os áudios da comunicação do VAR poderiam ajudar a perceber qual o entendimento de Luís Godinho e António Nobre neste lance. Olhando o lance no estádio, não parece haver dúvidas sobre o penálti, tendo em conta a ação de Otamendi. Olhando o lance nas sucessivas repetições, acabaremos por chegar à mesma conclusão que Duarte Gomes chegou no jornal “A Bola”, dizendo que é o avançado Jason quem se aproveita do facto do seu “adversário estar no solo para procurar o contacto”. O inusitado do anúncio do árbitro “falta cometida com a cabeça” poderá avançar para os anais do futebol nacional. Será um caso único. Diria que o lance teria tudo para não ser penálti se o jogo se jogasse na televisão. Percebendo a forma como o lance ocorre e o facto da decisão final ser do árbitro, custa-me que o VAR tenha encontrado razões para se posicionar perante a situação como um erro claro e óbvio do árbitro em campo.
Porque tudo seria penálti
É, portanto, um debate que tem que ser abordado pela linha de como manteremos a essência do jogo. Como é que continuaremos a ver o futebol no futuro? O que deve ter primazia, o adepto que assiste em casa e o video-árbitro ou os adeptos que estão nas bancadas e os intervenientes diretos no jogo? E será que as verdades de senso comum sobre o comportamento dos defensores continuarão a ser tomadas como boas? Eduardo Quaresma, no Santa Clara - Sporting, contrariou outra das regras básicas do comportamento do bom defesa, atacando a posição de um adversário que estavas de costas para o ataque, ainda por cima dentro da área. Ao atingir Matheus Pereira cometeu um penálti claro e óbvio que nem a equipa de arbitragem chefiada por Cláudio Pereira viu em campo, nem o VAR Hélder Malheiro compreendeu como merecedor de outra análise.
Quando se pedem critérios semelhantes nas decisões do VAR, isso nada tem que ver com o constante chamar do árbitro para ver repetições no ecrã. Um critério equilibrado e sustentável para lances semelhantes deve partir do responsável máximo da arbitragem que deve estar diretamente envolvido na tomada de decisão. O trabalho regular dos árbitros profissionais na definição deste critério, assente na visão para a competição que o Conselho de Arbitragem possa ter, é essencial para termos uma tomada de decisão que não leve a que as equipas se sintam constantemente prejudicadas. E, no entanto, não é isso que temos na Liga Portugal. Pelo contrário, tomou-se como bom ter o responsável do VAR a analisar e criticar as decisões dos árbitros do VAR, caso a caso, na televisão, incorrendo no erro inaugural deste texto. Olhar apenas para os casos concretos só nos faz terminar com uma ideia ainda mais longínqua da realidade do problema que temos em mãos.