Amesterdão, uma semana depois
Contra os que criam cliques sobre os efeitos das claques e tentam detonar a possibilidade de paz social que surge sempre que se disputa a vitória através de um jogo de bola.
Passada uma semana dos confrontos na noite de Amesterdão que envolveram adeptos do Maccabi Telavive, clube que visitava a cidade devido ao encontro dos israelitas frente ao Ajax, a contar para a Liga Europa, podemos perceber como as reações a este acontecimento alimentam diferentes narrativas de tensão que se têm espalhado pelo mundo sem que as partes pareçam preocupadas com uma visão global do acontecimento. Os factos distribuem-se da seguinte forma. Um grupo de adeptos do Maccabi Telavive chegou a Amesterdão na quarta-feira, tendo-se registado vários momentos de tensão com população local, incluindo o arrancar de bandeiras palestinas de varandas, a tentativa de agressão a um taxista, insultos a pessoas de aparência árabe nas ruas. No dia do jogo, estes momentos de tensão continuaram até que, dentro do estádio, foram entoados cânticos de louvor ao massacre do povo palestino, para além de terem desrespeitado o minuto de silêncio em memória das vítimas das cheias em Valência. Na noite de quinta-feira, segundo diferentes meios, população local de origem árabe ter-se-á organizado para procurar agredir elementos da claque israelita, registando-se cinco feridos com entrada no hospital, vinte a trinta com escoriações, tendo sido detidas sessenta e duas pessoas. O governo israelita enviou aviões para recolher os adeptos do Maccabi de volta ao seu país.
A “habitual” noite europeia
Teria sido uma “habitual” noite europeia. Ao longo da história, com maior ou menor intensidade, as viagens de adeptos para acompanhar as respetivas equipas nas competições europeias têm gerado confrontos. A base é bastante semelhante. Os adeptos viajam com um ou dois dias de antecedência em relação ao jogo, “ocupam” espaços da cidade enquanto consomem álcool ou drogas, registam-se conflitos, apuram-se feridos, a vida segue. A esta base acomodou-se a ideia da inevitabilidade. As forças de segurança preparam-se para estes eventos, tentando antecipá-los, sendo que os mesmos aumentam de intensidade quando se tratam de nacionalidades ou claques antagónicas, por velhas rivalidades, questões políticas ou ideológicas. Existem muitos trabalhos de estudo e análise destes grupos de adeptos, que não são homogéneos na sua essência, apesar da forma assim o dar a entender. Existem clubes onde os adeptos não estão organizados em claques, mas que têm um forte sentido comunitário que se demonstra nestas viagens. Noutros casos, grupos organizados e outros têm comportamentos bastante díspares. Em determinados casos, só viajam elementos que se integram como “adeptos” para tentar disputar estatuto nestes confrontos.
Quem sente ter agido em legítima defesa da sua cidade não se conforma com as leituras a partir daí geradas.
As forças de segurança têm noção destas organizações e das suas diferenças. No caso, a viagem dos adeptos do Maccabi Telavive, com um historial extremista e violento para com a população árabe, a uma cidade onde esta população tem uma forte presença, gerava suficiente sinal de alarme. Os confrontos seriam inevitáveis e a tentativa de os conter foi registada pelo forte policiamento nas ruas. No entanto, uma vez mais, em lugar de termos os ocupantes de órgãos de responsabilidade na Europa a acompanhar estas realidades e a reagir na medida que lhes é exigida - com conhecimento, com cuidado, com capacidade para deter os factos dentro da sua realidade - a opção voltou a ser o incendiar dos ânimos com a transformação destes confrontos numa ação de perseguição por motivos religiosos. Ao termos responsáveis políticos a exacerbar a condição de vítimas de uma das partes envolvidas, são as próprias instituições quem polariza o entendimento da realidade, tornando ainda mais complexo o controlo das consequências. Em Amesterdão, os conflitos entre população e forças de segurança alastraram-se devido a protestos contra as detenções e às medidas impostas após os confrontos. Quem sente ter agido em legítima defesa da sua cidade não se conforma com as leituras a partir daí geradas.
O conflito contínuo
Hoje disputa-se o França - Israel a contar para a Liga das Nações e Paris organiza-se para tentar conter um estender dos confrontos para a sua cidade. A reação de Bruno Retailleau, Ministro do Interior francês a um pano de apoio à libertação da Palestina num jogo do Paris SG também não ajudou. Questões de opinião são transformadas em crimes de apoio a terroristas. A delimitação da expressão política nos estádios tem dado muito jeito a quem procura impor uma ideologia sanitária ao pensamento, tornando lei inquestionável as opções políticas de quem organiza e das relações pouco aconselháveis entre governos e federações às amizades construídas à custa do jogo, dos adeptos e do fenómeno social que o futebol origina. No fundo, em lugar de acompanharmos os fenómenos gerados a partir do futebol para constituirmos conhecimento sobre as relações aí desenvolvidas, continuamos a ver o futebol ficar refém da indigência intelectual de quem nos governa e de quem procura desenvolver a sua diplomacia do controlo e da difamação, criando cliques sobre os efeitos das claques para detonar a possibilidade de paz social que sempre surge como possibilidade quando duas pessoas se entendem a disputar a vitória através de um jogo com bola.