Perceção do desastre em curso
O banal como regra de existência. A ausência de noção como modo de existir. O que escondem os ecrãs, os olhos que fechamos ao que nos bate à porta da vida.
Podemos confiar naquilo que vemos do mundo em que vivemos? Onde estamos a basear as nossas perceções, a nossa mundivisão? Com que coisas nos preocupamos ao ponto de deixarmos de entender as suas origens, os seus percursos, as suas reais dimensões? Agora que a época terminou, agora que a época está a começar, olhamos em volta e entendemos um certo vazio que nos provoca a redimensionar pormenores para que exista algo de relevante nas nossas vidas, quando a vida corre aí ao lado, intensa e abundante de coisas que nos escapam. Focamo-nos na discussão de questões de pagamento de uma transferência como se, no mundo, mais nenhum negócio se fizesse nestes termos. Encaram-se análises de acontecimentos como se o contexto onde eles se passaram valesse nada e o acinte fosse uma necessidade vital. Encerram-se realidades em pequenas janelas, enquanto nos empurram para uma piscina de conteúdos patrocinados por senhores da guerra. Perante tudo isto, como podemos confiar naquilo que vemos do mundo em que vivemos? Como podemos estar sossegados, em paz connosco, cientes do caminho que se repete e nos conduz a um ponto onde nada ficará a salvo da degradação do que é humano.
Carne para o canhão do negócio
Quando se menciona o negócio do futebol, a generalidade das pessoas entende-o como produto retirado de uma fase determinada no calendário, denominada mercado, onde passes de jogadores se transacionam com vista a que as equipas sejam reforçadas com novos elementos que prometem melhorá-las. Acontece que o negócio do futebol pouco ou nada tem que ver com transferências. Se assim fosse, o foco do investimento estaria na produção de talento e, se há coisa que o mundo nos continua a demonstrar, é que é possível identificar, selecionar e potenciar talento em parte do mundo onde o valor dos passes é bastante mais baixo do que a média mundial.
No entanto, o verdadeiro negócio do futebol situa-se na especulação. Uma especulação que se desenvolve dentro dos clubes, na forma como são adquiridos, na maneira como desenvolvem a sua imagem pública, nos caminhos que tomam para procurar valorizar ativos (sejam os jogos, o merchandising ou os jogadores) com vista a estabelecer metas e objetivos que tornem o investimento inicial pequeno perante o eventual lucro. Mas uma especulação que se estende, também, pela maneira como cada elemento em redor do jogo se vê transformado numa nuvem de fumo onde o desinteresse ganha novas camadas para transformar em acontecimento o que não acontece.
Novela em repetição
O “negócio Gyokeres” transformou-se em novela do verão, sobretudo para quem nunca leu ou viu uma novela. Esta mesma trama, em qualquer outro contexto, não teria o mínimo de audiência ou razão de existir pelo facto de ser uma repetição de tópicos banais. Um atleta que se imagina cheio de pretendentes para se ver dama de um pretendente só - rapidamente ilustrado como o desejo do jogador. Um pretendente que, perante a ausência de competidores, gere o tempo e os valores das ofertas para tentar comprar ao melhor preço possível. Um clube, detentor do passe, que segura a sua posição negocial. Já vimos isto muitas vezes, já o vimos, inclusive, com Gyokeres na mesma posição enquanto pretendido pelo Sporting.
Um precipício que parece ser uma imagem constante do nosso dia-a-dia, na forma como tudo é colocado na caixa do inexplicável em lugar de se tentar entender e explicar as razões dos acontecimentos.
E, no entanto, aqui estamos, a imaginar precipícios a cada hora que passa. Um precipício que parece ser uma imagem constante do nosso dia-a-dia, na forma como tudo é colocado na caixa do inexplicável em lugar de se tentar entender e explicar as razões dos acontecimentos. Tiago Martins, Sérgio Jesus e Vasco Santos, a equipa de VAR da final da Taça de Portugal, cometeram um erro crasso de avaliação, reforçando uma avaliação prévia de Luís Godinho que também poderia ter tido um cuidado diferente. O contexto do jogo, o momento em que aconteceu, é essencial para entender onde nasce o erro. Dizer que é inexplicável, tratar os três árbitros como ignorantes e merecedores de insultos, nada nos ajuda para o entendimento de um caso que merece uma análise mais profunda. Porque o erro, tendo tido peso no jogo e revelando uma falha de reconhecimento das regras num momento de pressão máxima, não se resolve com paternalismos bacocos em estúdios de televisão.
O ecrã que esconde
Finalmente, a televisão. A televisão que nos está sempre a conduzir para nos sentirmos perto do que nos é distante e nos distancia do que acontece à nossa porta. Uma sensação que se acentua quando se larga a realidade do futebol - onde, nos nossos dias, tudo acontece mais no ecrã do que no estádio ou à beira do relvado - para se encontrar a realidade de outros desportos. Por estes últimos dias, a acompanhar o Troféu Joaquim Agostinho em ciclismo, caminhei num espaço de memória que entendo, agora, ter sido abandonada por tantos. O que acontece à porta das pessoas parece pouco lhes interessar, na forma como lidam de maneira atabalhoada com a passagem dos atletas pelas suas ruas.
Uma distância que se radicaliza quando passo uma tarde de esperança a escutar António Filipe numa sala da Voz do Operário cheia, num discurso que se diferencia da massa informe do tudo igual e se posiciona de uma maneira clara, mas que não merece menção para lá dos 20 segundo obrigatórios sem qualquer demonstração da presença humana que o rodeou. Mais uma vez, é preciso sair, é preciso estar lá, é preciso viver. Enquanto ficarmos presos aos processados com que nos querem alimentar, mais distantes estaremos do humano que ainda resta em nós.