O jogador e a sua origem de classe
A partir da obra The Melancholia of Class problematizo a questão do jogador e a sua origem de classe que tanto tem sido apagada das nossas conversas sobre os efeitos do futebol.
No livro The Melancholia of Class - A Manifesto for the Working Class, Cynthia Cruz descreve o seu percurso de vida e académico a partir da sua origem de classe. Ao longo do livro, as suas experiências pessoais são confrontadas com casos de estudo, artistas da área da música e do cinema, com percursos semelhantes. Em todos estes casos, a origem desfavorecida prende-se ao território onde nascem e crescem, às condições de vida e de trabalho dos seus pais, confrontando-se ao longo do percurso com um discurso e uma realidade que não os reconhece como possibilidade. A origem de classe baixa coloca as pessoas fora do que é entendido como a realidade, fazendo-se esse percurso de uma constante disparidade entre o que estas pessoas vivem e sentem e a maneira como o podem expor e explicar. Para Cynthia Cruz, professora universitária na área da literatura, poeta e escritora, esta impossibilidade de ser compreendida conjuga-se com a impossibilidade de voltar atrás, onde também já não pertence. Para os vários artistas que toca no seu livro, Paul Weller, Amy Winehouse, Cat Power, Jason Medina, Mark Linkous, entre outros, o mesmo percurso de dificuldades, desentendimentos e desconexões com a sua origem ou com as comunidades onde acabam por chegar, fazem desta obra um autêntico soco nos queixos. Mas, enquanto o li, várias vezes me fez pensar: e no futebol, o que sentem os homens e mulheres que chegam de uma classe baixa?
Contra o mito do elevador social
A prevalência de rapazes oriundos de classes mais baixas em equipas de elite do futebol profissional é elevadíssima, o que ajudou a criar o mito do futebol enquanto elevador social. Se, por um lado, esse é um facto plenamente aceite - o futebol é uma das poucas portas abertas para que jovens de classes mais baixas consigam encontrar um caminho para alcançar uma posição de riqueza - por outro, a sua origem de classe é em quase todas essas ocasiões obrigada a ser trespassada por uma reformulação do seu comportamento para que este possa ser aceite. Vivemos no contexto estranho de continuar a ter uma forte busca da parte de observadores dos grandes clubes em bairros e zonas desfavorecidas, por entender poder encontrar aí experiências de motricidade mais ricas em idades precoces, ao mesmo tempo que se desenha um discurso de desterritorialização desses jovens, inserindo-o num espaço de Academia onde lhe são impostas regras comportamentais que lhe permitem a progressão no rumo do profissionalismo.
A maneira que muitos encontram de escapar a este contínuo risco de condenação é o de apagar de si as marcas da sua origem.
Ao mesmo tempo, gera-se um discurso de condenação do bairro e da origem desfavorecida, colocando sempre aí a explicação para os problemas que possam ocorrer no quadro de desenvolvimento do atleta. As companhias, a família, os erros que são cometidos por estes jovens têm sempre um quadro de explicação que se prende às suas origens e não às suas opções pessoais, tornando o erro num destino ao qual fica impossível de fugir. A maneira que muitos encontram de escapar a este contínuo risco de condenação é o de apagar de si as marcas da sua origem. Adotando um posicionamento e um discurso que os afasta das suas origens e os transmuta para um outro território onde, de facto, são bons exemplos de um afastamento das raízes que é pouco produtivo como linha de trabalho sobre a realidade de outros jovens que sonhem fazer o mesmo caminho.
A conceptualização da origem
A generalidade dos exemplos de evolução social do jogador de futebol tende a aproximar-se mais do ideal comercial do que do impacto social e cultural. A transformação do nome em marca, avaliação de potencial, desenho de campanha nas redes sociais e expressão da sua diferença através do gesto no jogo e do gesto fora de campo. A aliança entre jogadores e marcas, moda, tendências retiram a sua individualidade enquanto pessoa para a transformar em peça de um mecanismo promocional que lhe permite ter maiores oportunidades financeiras, mas quase sempre menor participação social e invisível proporcionalidade no que toca ao efeito realmente transformador da sua existência. Um jogador que sai do bairro é, hoje, alguém que se ejeta e salva do seu redor, não alguém que passa a funcionar como um referente presente nas pessoas que partilharam consigo comunidade.
Essa coragem de ter jogadores de futebol a falar de racismo, de dificuldades de integração, de experiências de desterritorialização ao longo da sua formação é essencial para compreendermos uma realidade que nos continua a fugir.
Em falta está uma conceptualização da origem que nos permita mergulhar, através destes elementos de singular talento e capacidade, numa realidade que nos continua a escapar. Curiosamente, sobre os últimos eventos que levaram os meios de comunicação social a escutar referências entre pessoas originárias de zonas desfavorecidas, nenhum jogador de futebol foi escutado, como se referir a sua origem e problematizá-la de um ponto-de-vista de pertença quebrasse o efeito que a sua figura exige. Essa coragem de ter jogadores de futebol a falar de racismo, de dificuldades de integração, de experiências de desterritorialização ao longo da sua formação é essencial para compreendermos uma realidade que nos continua a fugir. E a ser totalmente dominada pelo exemplo que corre mal, pelo jovem que quebra na sua evolução, pelo profissional que falha no seu caminho, culpabilizando-se a origem sem compreender bem até onde e como ela pode ser um elemento positivo e fundamental na vida do jogador de futebol.
Há mais para ouvir
As músicas citadas na obra The Melancolia of Class - A Manifesto for the Working Class estão reunidas numa playlist que pode ser escutada aqui.
Há mais para ler
O livro de Cynthia Cruz está apenas publicado em língua inglesa, espera-se em breve a possibilidade de o ler também em português. Pode ser encomendado em Portugal por via das Livrarias Bertrand.
gravou uma entrevista com a autora que pode ser ouvida aqui:Há também uma outra entrevista no
disponível no Substack: